Ao longo dos dois anos de pandemia, a intensivista e cardiologista Ludhmila Hajjar se tornou uma das médicas mais experientes no tratamento da doença no país. Nesse período, publicou 31 artigos científicos em revistas internacionais sobre a infecção.
Conhece as diferentes realidades do sistema público e privado — é intensivista e professora de cardiologia do Hospital das Clínicas, em São Paulo, e médica da Rede D´Or.
Atendeu mais de mil infectados em todos os estágios da doença — dos mais leves aos mais graves, entre eles nomes como Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados, Dias Toffoli, ministro do STF e Eduardo Pazzuelo, ex-ministro da Saúde, cargo para o qual foi chamada por Jair Bolsonaro em março de 2011 — e recusado por ela.
Em entrevista, Ludmilla faz um retrato contundente da atual fase da pandemia, com alta de casos no mundo todo (e poucas mortes), e contextualiza o Brasil, a falta do autoteste, o impacto da doença entre os não vacinados e nos profissionais da saúde.
Até agora, a Ômicron tem provocado muitas infecções e poucas mortes entre os vacinados. Esse perfil pode mudar?
Dificilmente, pelo que vimos até o momento na África do Sul, o primeiro país a registrar casos dessa variante. Mas ressalto que estamos lidando com um vírus novo, altamente mutagênico, que pode ainda nos trazer surpresas. O da gripe, além de bastante conhecido, muda muito mais lentamente. Essa incerteza reforça ainda mais a importância da vacinação.
Há uma linha cientifica que diz que podemos estar no início do fim da pandemia, pelo atual perfil das infecções. Você concorda com isso?
Sim e por um motivo principal. Temos pela primeira vez a junção de dois fatores: uma variante altamente prevalente infectando muita gente imunizada. Isso faz com que um número alto de pessoas se infecte com a forma branda da doença, o que é bom para a imunização. Não podemos, no entanto, baixar a guarda com a vacinação.
Como você vê no dia a dia dos hospitais as diferenças entre o paciente infectado pela Ômicron que foi vacinado e o não imunizado ou com ciclo incompleto?
Brutal. As UTIs estão atualmente só com casos de Covid entre os não vacinados. Os imunizados dificilmente passam do atendimento ambulatorial.
Você já presenciou um paciente infectado arrependido por não ter tomado a vacina?
Como intensivista, tenho visto cada vez mais pacientes internados arrependidos de não terem sido vacinados. Eles chegam com a forma grave da doença, se arrependem, porém, já é tarde.
Você nota alguma diferença no perfil dos infectados no sistema público e privado?
No início da pandemia sim. O paciente internado no sistema público era mais grave, tinha mais comorbidades, mais tempo de doença, e consequentemente, somado ao déficit estrutural, apresentava piores taxas de sobrevida. Atualmente, com a variante Ômicron, a doença tem apresentado comportamento semelhante em ambos os sistemas. A variável mais expressiva em relação ao perfil da doença, ter sido definitivamente o não vacinado.
A Ômicron começou a provocar baixas importantes nos profissionais de saúde, principalmente nos que estão na linha de frente. Como deverão ser os próximos dias?
Pelo ritmo que estamos vendo, em uma semana os sistemas de saúde deverão entrar em colapso no Brasil. O número de infecções aumentará mais ainda nos ambulatórios e provavelmente faltarão mais profissionais da saúde no combate. A maioria dos médicos e enfermeiros foi imunizada com duas doses da CoronaVac e reforço da Pfizer. A CoronaVac foi importantíssima no início, frente a inexistência de outras. Mas ela não protege como as outras em relação a novas variantes. Muitos de nós seremos infectados. De uma forma mais branda em relação ao que se viu há um ano, quando não havia imunizantes no Brasil. Mesmo assim, seremos afastados. Só na minha área do Hospital das Clínicas, de São Paulo, por exemplo, temos 56 profissionais afastados.
Na segunda-feira, a Confederação Nacional de Saúde enviou aos ministérios do Trabalho e Emprego e da Saúde a solicitação de que os profissionais de saúde com Covid-19 assintomáticos e que tenham tomado a dose de reforço da vacina contra a Covid não sejam afastados. O que você acha disso?
Perigoso. Temos contato físico muito próximo dos pacientes, o risco de transmissão é alto ainda mais quando se trata da Ômicron, que tem uma taxa muito alta de contaminação. Reduzir o tempo de quarentena acho responsável e isso poderá ajudar para cobrir desfalques. Mas ao menos sete dias de afastamento seria prudente.
Atravessamos dois anos de pandemia sem a permissão no uso do autoteste para testagem de Covid-19. Qual a sua opinião a respeito?
O Ministério da Saúde deverá finalmente pedir a liberação desses exames à Anvisa, mas deveria ter feito isso antes. Se os testes caseiros estivessem sendo usados, muito possivelmente não estaríamos vivendo o que estamos vivendo. Eles precisam ser de boa qualidade, ter boas marcas, claro. Mas o argumento de quem é contrário à liberação, de que há risco de serem malfeitos em casa, são fracos. As pessoas devem seguir as orientações do produto e, claro, os profissionais da saúde devem orientar sempre que for necessário. Além do que os brasileiros já fazem procedimentos delicados em casa e com sucesso, como testes para HIV e aplicação de insulina.
Algumas cidades aboliram o uso de máscara ao ar livre. Qual a sua opinião sobre isso?
Nesse momento, com o número de infectados em ascensão, com o surgimento de novas variantes, ainda com desigualdade na aplicação das vacinas, eu sou contra abolir uso de máscaras, medidas simples, disponível e efetiva contra a Covid-19.
Os remédios aprovados recentemente nos Estados Unidos para a prevenção e os casos mais leves terão impacto nesse pico atual de casos?
Os novos antivirais como o paxlovid e o monulpiravir são eficientes para impedir a forma grave da Covid-19, e demonstraram ser eficazes inclusive contra a Ômicron. Ter as medicações disponíveis no Brasil pode ter impacto significante na redução de internações e de gravidade pela doença atual.
Se você fosse dar um conselho para o ministro da Saúde neste momento, qual seria?
Sugiro que o ministro amplie a discussão com a comunidade científica sobre o momento epidemiológico do Brasil, reforce as campanhas de vacinação contra a Covid-19 com maior alcance e promova informações seguras e adequadas à população, amplie a disponibilidade de testes diagnósticos em todo o país, e fortaleça o sistema de vigilância com transparência e atualização na publicação de dados. Cada um desses pontos é fundamental.